Afinal, e ao contrário do que pensava, o presidente Putin, de facto e de jure, decidiu reconhecer as independências das repúblicas separatistas da região de Donbass (Donetsk e Lugansk), violando, desta forma, os – claramente falhados – Acordos de Minsk I e II.
Recordemos, sinteticamente que cada um destes tratados previa: o Minsk I antevia a adopção de uma “lei sobre o estatuto especial” das duas regiões independentistas, e que descentralizaria temporariamente o poder em Lugansk e Donetsk, a realização de eleições locais, e “um diálogo inclusivo a nível nacional” e o estabelecimento de uma zona-tampão na fronteira para impedir o abastecimento russo; por sua vez, o Minsk II consubstanciava a elaboração de uma nova Constituição ucraniana, na qual se reconheceria a descentralização das regiões e em especial as peculiaridades de Donetsk e Lugansk, garantindo, entre outras coisas, o direito à “autodeterminação linguística”, a “cooperação transnacional” entre as regiões ocupadas e as regiões da Rússia com o apoio das autoridades centrais, o direito dos parlamentos locais em criar milícias populares, e em contrapartida, a Ucrânia retomaria o controlo da fronteira (já sem zona-tampão) antes de todos os passos do acordo serem concluídos e realizar-se-iam eleições nas duas regiões sob os padrões da OSCE. Na realidade, nada aconteceu…
Na minha opinião esta atitude de Putin parece ser pouco inteligente, porque poderá – ou vai – colocar, se não todos, uma grande maioria de países, contra ele e a Rússia (há um ditado antigo que diz que nas costas dos outros, vejo as minhas…)
E há países em que antes de se mostrarem solidários com Moscovo, deverão pensar e olhar muito seriamente para as suas fronteiras. Se foram solidários com a Sérvia, e esta com apoio russo, quanto a Kosovo, estes dois casos – uma vez mais na geopolítica europeia – serão muito diferentes e não por causa da intangibilidade das fronteiras internacionalmente reconhecidas, mas porque, como adiante se verá, poderá ser o princípio de um bonapartismo imperialista….
O senhor Putin com a atitude que mostrou – autocrática e imperial – na declaração internacional sobre a legitimação das independências separatistas russófonas de Donbass, evidenciou estar preparado para a guerra. E porquê? porque ao reconhecer as Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk está a dizer que qualquer ataque a estas duas repúblicas separatistas, por parte da Ucrânia, poderá ser considerado como um ataque a dois estados independentes e porque estes terão apoio claro e inequívoco da Rússia – a quem, certamente, pedirão apoio contra os ataques ucranianos – o que levará Moscovo a ajudar e atacar posições ucranianas (mesmo que, oficialmente, sejam territórios ucranianos). E isso já se viu, quando e quase de imediato, tropas russas foram enviadas para estas duas regiões rebeldes sob o pretexto de serem uma força “peacekeeping” (as forças de manutenção de paz)…
Acresce que Putin, nesta sua declaração e com passagens pela História, foi mais longe ao afirmar que a Ucrânia foi sempre “historicamente russa” criticando a Revolução bolchevique e, indirectamente, Lenine da existência ucraniana, sobre a qual, e explicitamente, Putin “terminou” dizendo que não reconhece a existência da Ucrânia como um país independente, fora do – e cito – “império russo”!
Esta posição putinista quanto à territorialidade russa e não reconhecimento da Ucrânia como estado independente, foi bem expressa pelo texto/ensaio de Vladimir Putin, de Julho de 2021, intitulado “Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos” onde o presidente russo descreve que «Russos, ucranianos e bielorrussos são todos descendentes da antiga Rússia, que era o maior estado da Europa. Tribos eslavas e outras tribos em todo o vasto território – de Ladoga, Novgorod e Pskov a Kiev e Chernigov – estavam unidas por uma língua (que agora nos referimos como russo antigo), laços económicos, pelo governo dos príncipes da dinastia Rurik e a fé ortodoxa. A escolha espiritual feita por São Vladimir, que foi Príncipe de Novgorod e Grão-Príncipe de Kiev, ainda determina em grande parte nossa afinidade hoje. O trono de Kiev ocupava uma posição dominante na antiga Rússia. Este era o costume desde o final do século IX. O “Conto dos Anos Passados” capturou para a posteridade as palavras de Oleg, o Profeta, sobre Kiev: "Que seja a mãe de todas as cidades russas"» (a versão inglesa e integral deste ensaio, pode ser lida em: http://en.kremlin.ru/events/president/news/66181).
Resumindo, estão reunidas todas as condições, mesmo que o Ocidente estrebuche – e sabemos, nesta altura que escrevo o texto que já tomou as suas posições políticas e económicas sancionatórias contra interesses russos –, para que haja uma invasão da Ucrânia por parte da Rússia, o que nos levará à possível guerra russo-ucraniana, cujos contornos colaterais – sejam políticos, económicos e militares – são imprevisíveis.
Esperava mais inteligência política de Putin, principalmente quando estava em perspectiva uma reunião entre os dois responsáveis das relações exteriores dos USA e da Rússia e porque Putin sabe que os estatutos da OTAN/NATO não permite adesão de países em situação de guerra ou com crises político-militares internas: como é o caso da Ucrânia – este tem sido um dos cavalos de batalha de Putin para as suas atitudes face à Ucrânia.
Recorde-se as recentes palavras do chanceler alemão Olaf Scholz, quando afirmou, e cito «que a integração da Ucrânia na NATO "nos próximos dias, meses ou anos não está na ordem do dia»…
Por isso, repito, parece-me pouco inteligente esta intervenção de Putin. Salvo se a sua “pele política interna” está em declínio, como recordava, recentemente uma jornalista-sénior de um canal televisivo português ao salientar que, há muito, que deixámos de ver Putin rodeado de políticos e militares nas suas deambulações pelas áreas políticas e militares; e a forma como ele se apresentou na televisão e perante os seus “colegas de painel”, isso o demonstra…
Claramente, no dia da apresentação televisiva das suas manifestações de interesse na questão ucraniana, Putin assumiu, como já referi antes, um perfil imperial e defendeu um certo – inequívoco - expansionismo. Parecemos estar perante um novo Bonaparte. E sabemos como este e as suas ideias imperial-expansionista acabou. O problema, repito, são as consequências colaterais.
Ainda que, e resumindo face à sua atitude, não será de descartar que…, Putin poderá querer anexar, totalmente, Ucrânia – recordo que não reconhece a sua existência como Estado independente – e, certamente – Lukachenko se cuide – a Bielorrússia (Belarus). Todavia, e porque esta ainda ter um autocrata muito próximo de Moscovo, talvez possa ser dos últimos a ver o país anexado por Rússia (ligaria a Rússia-mãe ao exclave “oblast” de Kaliningrado). Antes, estarão na mira de Putin, a Geórgia – de quem o autocrata de Sampetersburgo (Leninegrado) tem péssimas recordações, apesar de ter anexado a Ossétia do Sul e Abkházia –, o Cazaquistão – a principal base de lançamento das naves cosmonautas russas – e, não tão desprezível assim, face à progressão islâmica para Norte, alguns países islâmicos da antiga URSS, para servirem de tampão a essa progresão...
E quem poderá estar satisfeito – e ao contrário do que muitos possam pensar – é Xi Jiping, mesmo apesar de se ter manifestado favorável às pretensões políticas russas quanto à não – já se sabe impossível – adesão ucraniana à NATO. Porque parte das tropas russas sairão da fronteira sino-russa – como já saíram da fronteira russo-mongol – e é sabido que russos e chineses sempre tiveram alguma relação difícil nas respectivas fronteiras.
Recordemos o que passou entre ambos, no século passado, nos finais dos anos 60, mais concretamente de Março a Setembro de 1969, quando eclodiu um conflito militar sino-soviético sobre delimitação de fonteiras – chegou quase a estar próximo do nuclear e que não teve maior impacto porque os EUA declararam neutralidade, mas, adoptando uma política semelhante à de Salazar (Portugal) de “neutralidade colaborante” avisaram Moscovo que no caso do conflito aumentar de proporções, apoiariam a China – “armisticiado” pelo acordo sino-soviético de fronteiras e que só foram “regularizados” com a assinatura dos tratados de 1995 e 2004, e o acordo adicional de 2008, que redefiniram as fronteiras entre os dois países e, em particular, sobre o controlo de algumas ilhas nos rios fronteiriços russo-sino-mongóis Amur e Argun.
Esta situação criada pelo presidente russo, Vladimir Putin, – repito, na altura que este texto foi escrito, as vozes do Conselho de Segurança, as reuniões dos diferentes Conselhos de Defesa de alguns países Ocidentais, as sanções económicas do Reino Unido e da Alemanha, ainda eram débeis – traz para o Direito Internacional Público várias questões que terão de ser, futuramente, debatidas segundo uma nova perspectiva internacionalista, caso dos direitos inalienáveis de Soberania e Integridade Territorial – sabemos qua há casos antigos que “foram ou estão esquecidos”, como Kosovo ou Chipre –, de Tratados e da (in)operacionalidade da ONU se tornarem inóxios ou insignificantes…
Publicado no Novo Jornal em 2 partes: edições 724, de 25 de Fevereiro, pág. 37, e 725, de 4 de Março, pág. 33 (pode aceder aos textos em pdf clicando na imagem)