"Quando a Árvore da vida é História que o povo escreve no peito"
“Um Povo sem o conhecimento da sua história, origem e cultura é como uma árvore sem raízes”
– popularizado por Marcus Garvey
Um, de origem não definida, mas que o ativista político e jornalista jamaicano e fundador e primeiro presidente da Associação Universal para o Progresso Negro e Liga das Comunidades Africanas, Marcus Garvey (1887-1940) popularizou e que encima este meu texto.
O outro, bem nacional, é um provérbio ovimbundo, que caracteriza o livro de Sicato Kandjo por a maior parte da obra histórica deste autor se quase circunscrever à área do Reino Ovimbundo, e que nos diz que “Ovindele visonehã alivulo, etu tusonehã vutima” (Os brancos escrevem livros, nós escrevemos no peito) (José, 2016: 183 -198).
Kandjo não escreve no peito a História de Angola, esta sua História de Angola, mas dá, claramente, o peito e a máxima sensatez por ela.
Apesar de, na sua grande parte descritiva, a História que Kandjo nos apresenta ter como base o Povo Ovimbundo, o autor procurou, ainda que de forma sintetizada abordar a nossa História – geral – desde a Pré-História até a acontecimentos recentes, sem descurar, inteligentemente, a nossa História antropológica, bem como os troncos linguísticos que lhes estrão associados.
Muito da nossa História assenta em dois principais vectores efectivos: tradicional oral e escrito.
O Tradicional Oral, que Kandjo usou para sustentar a sua versão histórica, por regra aborda a assenta na transmissão de gerações em gerações através dos provérbios, dos contos, das canções, das baladas ou dos cânticos que os Povos e os Mais Velhos (os Kotas, os Reis, os Sobas) nos transmitem com a natural sensibilidade e harmonia que bem sabem fazer e Óscar Ribas tão bem nos ofereceu nos seus escritos, como “Misoso” (1978), por exemplo. O problema das Tradição Oral é que esta, com os tempos, pode ser “adulterada”, “viciada” pela passagem das gerações.
Por sua vez, as versões escritas ainda que sejam mais facilmente de não serem objecto de “pervertida” pelos anos, pode, outrossim, ser tratada de acordo com os interesses dos “historiadores” ou “cronistas” que a escrevem; por vezes, não raras vezes, algumas Histórias são escritas pela visão restrita de um “vencedor”, como destacava George Orwell, no texto «"As I Please" (1943–1947)» (Orwell, 2008) ou como alerta Anthony Doerr (2015) «A história é aquilo que os vitoriosos determinam. (…) Seja qual for o vencedor, ele é quem decide a história». Daí a necessidade de a História ter um tempo para “repouso” a fim dos Historiadores a poderem ler com verticalidade, com distanciamento e sem a sujeição aos ditames dos tais “vencedores”.
Indiscutivelmente, a nossa História ainda está sob o impacto dos “vencedores” que tentam definir o futuro, impondo o presente, deturpando o passado.
Ora, é isto que o autor deseja fugir.
Para isso, tomou duas importantes atitudes. Para os factos pré-históricos e antropológicos foi beber a sabedoria em autores reputados Africanos, incluindo Angolanos, e não-Africanos. Para a História mais contemporânea (do século XVII a inícios do Século XX) preferiu ir beber às fontes tradicionais locais, pondo sempre em contraponto, mas sem descartar, a História que o Colonizador nos deixou. Para a História actual, aquela que ainda tem o cunho e o selo dos “vencedores”, inteligentemente, Kandjo sem desembaraçar-se “destes” preferiu assentar o seu estudo em autores mais “desabrigados” da historiografia oficial de que destaco, entre outros e pela respeitabilidade que eles já carregam, Patrício Batsîkama, Alberto Oliveira Pinto, Jean-Michel Mabeko-Tali, Dalila e Álvaro Mateus, entre outros.
Ainda que haja outros importantes autores, sejam como historiadores, como antropólogos, sociólogos ou cronistas e romancistas, proponho que João Sicato Kandjo os possa e deva ler, para uma próxima edição desta obra, de que destaco – e que deixo em referências, como ajuda –, entre outros, Edmundo Rocha, Douglas Wheeler & René Pélissier, Alcides Sakala, José Jaime e David Birmingham (nesta obra indicada, destaco a excelente tradução de Arlindo Barbeitos) ou, devido a alguns romances de cariz histórico, Pepetela, Jorge “Kalukembe” e José Eduardo Agualusa.
Esta não é certamente uma obra acabada. Por isso que proponho, para futuras edições revistas e aumentadas, estes autores. Certamente que Kandjo também tem essa percepção; de ser necessário, periodicamente, actualizar esta sua História de Angola.
Como Oliveira Pinto afirma – e bem – um “Historiador é tudo menos um profeta”; ou seja, um Historiador descasca o que envolve a verdadeira História para desta (re)tirar o que mais importante, de facto, ocorreu, não devendo, não podendo, caso ao “produto histórico” não for bem trabalhado, bem esfolhado, bem correcto, bem verdadeiro, ele pode ser “Ukêmbu ua pêtu, moxi isuta” (encantador por fora, deplorável por dentro) (Ribas, 1978: 135); ou seja, a História pode ficar tudo o que o autor quiser, menos uma obra – sempre inacabada – autêntica, máximo possível verídica, digna, honesta. Alunos, investigadores, simples leitores, isso o agradecerão.
Todos queremos que a História, no caso presente, esta nossa História que João Sicato Kandjo pelo que nos oferece e onde é perceptível que o tudo que bem tentou cumprir pelas boas regras de um “produto histórico”, de uma obra de História, seja e tenha o Povo Angolano, o principal “peão do xadrez da História de Angola”1, e na linha do que afirmava Garvey, “Bonga xitu, makamba ma-ku-tenene; bonga mulonga, makamba ma-ku-lênga” (Muito tens, muito vales; nada tens, nada vales) (Ribas, 1978: 133) a Honra de ter as suas Raízes bem definidas e melhor narradas.
A João Sicato Kandjo o meu obrigado pelo prazer que me deu ler esta sua monografia – prefiro assim a proclamar como incentivo a desenvolvê-la ainda mais – e a honra que me outorgou ao convidar-me para a prefaciar.
Referências:
BIRMINGHAM, David 2003). Portugal e África. Lisboa, Veja Limitada.
DOERR, Anthony (2015). Toda a Luz que Não Podemos Ver. Lisboa. Editorial Presença, URL: https://citacoes.in/obras/toda-a-luz-que-nao-podemos-ver-25/
JAIME, José (2014). Os Khoisan. Luanda. Edição conjunta do Autor e Rubricart.
JOSÉ, Nsimba (2016). As narrativas orais ovimbundu como espaço de produção de sentidos; in: Kadila: culturas e ambientes – Diálogos Brasil-Angola. São Paulo. Blucher, 2016; pp. 183-198; URL: DOI: 10.5151/9788580392111-12.
LANÇA, Marta (2017). Entrevista a Alberto Oliveira Pinto. in: blogue BUALA.org; URL: https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/o-povo-e-o-peao-do-xadrez-da-historia-de-angola-entrevista-a-alberto-oliveira-pinto.
ORWELL, George (2008). Orwell in Tribune: As I Please and Other Writings 1943-7. London. Methuen Publishing Ltd.; URL: https://citacoes.in/citacoes/577070-george-orwell-a-historia-e-escrita-pelos-vencedores/.
RIBAS, Óscar (1978). Misoso, Literatura Tradicional Angolana. I volume. 2ª edição. Luanda. IN-UEE.
ROCHA, Edmudo 2003). Angola, Contribuição ao estudo da Génese do Nacionalismo Moderno Angolano (período de 1950-1964) – Testemunho e Estudo Documental. Luanda. Editora Kilombelimbe.
SAKALA, Alcides (2006). Memórias de um Guerrilheiro. Lisboa. Publicações D. Quixote.
WHEELER, Douglas & PÉLISSIER, René (2009). História de Angola. Lisboa. Edições Tinta da China.
Maio de 2021
Nota de Rodapé:
1 Entrevista de Alberto Oliveira Pinto a Marta Lança, em Março de 2017; fonte: https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/o-povo-e-o-peao-do-xadrez-da-historia-de-angola-entrevista-a-alberto-oliveira-pinto
Obra publicada em 2021, pela Nova Edições Acadêmicas, (Moldova) e mais recentemente, em 2024, pela NHConteúdos (Luanda)